«A América Latina está a enfrentar a maior recessão alguma vez registada. Temos de demonstrar a nossa solidariedade para com os seus 665 milhões de habitantes. É do nosso interesse comum apoiar a região para que a sua recuperação seja ecológica, digital, sustentável e inclusiva.»
A nossa parceria com a América Latina é paradoxal: apesar de termos muito em comum, as nossas interações ainda estão muito aquém do seu potencial. De facto, partilhamos línguas, cultura, história e religião com a América Latina... Uma parte importante da sua população descende de migrantes europeus que partiram em busca de uma nova «terra prometida» entre o século XVI e o século XX. Buenos Aires ou Santiago parecem-se com cidades europeias. Sob múltiplos pontos de vista, temos as maiores afinidades a nível mundial.
Contudo, a América Latina também é muito diferente da Europa. A sua identidade resulta das suas raízes indígenas e de influências hispânicas, portuguesas, bem como africanas, francesas ou italianas. Ao desenvolver a sua própria personalidade, a América Latina está a tornar-se cada vez mais na América do Sul. Consequentemente, a América Latina exerceu uma enorme influência cultural no século passado e tem constituído um laboratório para muitas experiências políticas. Não obstante, a região também sofre cronicamente de violência social e política endémica.
Quando assumi o cargo de AR/VP, grande parte das pessoas acreditava que o facto de ser espanhol me levaria a prestar especial atenção à América Latina. No entanto, há quase um ano que não viajo para a América Latina, devido às crises na nossa vizinhança e às restrições ligadas ao coronavírus. Temos de inverter a tendência: chegou o momento de nos empenharmos mais ativamente.
Em julho, já tínhamos debatido o impacto dramático da COVID-19 na América Latina e nas Caraíbas (ALC). Desde então, a situação agravou-se e a região é agora a mais afetada pela pandemia, levando a um aumento alarmante da pobreza e das desigualdades. Representando apenas 8 % da população mundial, a América Latina regista atualmente um terço das mortes a nível global. Os sistemas de saúde estão muitas vezes sobrecarregados e a região herdou várias questões sociais, algumas das quais também estão presentes na Europa, que têm agravado o impacto da pandemia: vastos setores informais, pobreza, insegurança, cidades sobrelotadas, comunidades rurais isoladas, saneamento inadequado e cuidados de saúde limitados.
Mesmo antes da pandemia, a frustração estava a aumentar na região devido ao retrocesso dos progressos em matéria de desenvolvimento registados nas últimas décadas. É provável que a instabilidade política, a insegurança e os desafios à democracia e aos direitos humanos perdurem. A criminalidade organizada está a intensificar-se naquela que é a região mais violenta do mundo, sendo que o apoio à democracia diminuiu para um mínimo histórico (de 61 % em 2010 para 48 % em 2018, de acordo com Latinobarometro (ligação externa)).
A região é abalada por muitas crises políticas. A Venezuela continua a ser uma ferida aberta: cerca de 5,1 milhões de venezuelanos procuraram refúgio nos países vizinhos. A crise humanitária na Venezuela é a maior da região e uma das menos financiadas pela comunidade internacional. Os conflitos internos e a violência persistem na Colômbia, na Bolívia e na Nicarágua, registando-se tensões sociais crescentes em vários países da região. Atualmente, a Venezuela e a Colômbia encontram-se entre os principais países de origem dos requerentes de asilo na UE (respetivamente no terceiro e quarto lugar). Contudo, este fluxo passa despercebido porque estes requerentes de asilo não chegam às nossas costas em embarcações que põem em risco as suas vidas.
O FMI alerta agora para outra «década perdida», prevendo-se que as economias diminuam de 8,1 % em 2020. Numa altura em que a região atravessa a maior recessão de sempre, demonstrar a nossa solidariedade quando os seus 665 milhões de habitantes mais precisam não constitui apenas um imperativo moral, mas também uma oportunidade para reforçar o compromisso da UE com uma região cuja relevância estratégica tem passado despercebida durante demasiado tempo.
A atenção concedida à região da ALC não é, de facto, proporcional à sua importância. Em conjunto, representamos quase um terço dos votos na ONU. O volume de investimento direto estrangeiro (IDE) da UE27 na ALC ascende a 758 mil milhões de euros: mais do que o total do investimento da UE na China, na Índia, no Japão e na Rússia combinado. A UE também é o principal parceiro de desenvolvimento da região e um dos principais prestadores de ajuda humanitária. Existem contactos interpessoais intensos: cerca de 6 milhões de cidadãos da UE e da ALC vivem e trabalham do lado oposto do Atlântico. A UE negociou acordos de associação, de comércio ou políticos e de cooperação com 27 dos 33 países, o que faz da ALC a região cujas relações institucionais com a UE são as mais estreitas.
No entanto, não organizámos nenhuma Cimeira desde 2015 e poucas visitas de alto nível. Esta situação não passou despercebida: as nossas missões diplomáticas têm vindo a alertar para um sentimento crescente de abandono. Paralelamente, outros intervenientes internacionais estão a ganhar terreno. O envolvimento dos EUA tem sido estável e o investimento chinês decuplicou entre 2008 e 2018. Aliás, a China suplantou-nos recentemente enquanto segundo parceiro comercial mais importante da América Latina.
Por conseguinte, muito agradeço à Alemanha a sua proposta de organizar uma conferência ministerial UE-ALC em Berlim, no mês de dezembro. Esta iniciativa poderá implementar uma nova dinâmica de compromisso de alto nível. É também urgente redinamizar a relação da UE com o México e o Brasil, que são os nossos principais parceiros estratégicos na região. Devemos trabalhar rapidamente para organizar cimeiras em 2021.
É do nosso interesse comum apoiar os países da ALC para que a sua recuperação seja ecológica, digital, sustentável e inclusiva. A ALC alberga a floresta tropical da Amazónia, acolhe 50 % da biodiversidade do planeta e representa cerca de 8 % das emissões mundiais de gases com efeito de estufa. Garantir que a região adote uma trajetória de crescimento mais sustentável é uma questão de interesse mundial. Tal deverá passar por objetivos mais ambiciosos no quadro do Acordo de Paris, antes da COP 26 em 2021.
A este respeito, o acordo UE-Mercosul poderá constituir um fator de mudança decisivo. Lembro-me de viajar para o Brasil e a Argentina no início deste século, enquanto Presidente do Parlamento Europeu, e de ouvir que este acordo estava «quase» concluído. Cerca de 20 anos mais tarde, continua a estar «quase» concluído. Se for aprovado, será o maior acordo de associação alguma vez alcançado pela UE e poderá contribuir significativamente para a recuperação económica em ambos os lados do Atlântico.
Contudo, estou ciente de que o atual clima político não facilita a sua ratificação. O Parlamento Europeu adotou uma resolução que alerta para o facto de este acordo não poder ser ratificado na sua forma atual. A nível do Conselho, um número significativo de Estados Membros manifestou a sua oposição. Por conseguinte, precisamos de dialogar com os parlamentos e os cidadãos para responder melhor às suas preocupações.
O acordo UE-Mercosul não deve ser visto como um simples acordo de comércio livre. Nem o Mercosul nem a UE foram criados como simples zonas de comércio livre, portanto um acordo entre os dois também não pode ser visto nesses termos redutores. Este acordo tem uma finalidade geopolítica significativa: trata-se de uma ferramenta que permite a ambas as regiões lidar melhor com o confronto entre os EUA e a China, que tem vindo a intensificar-se e ameaça relegar tanto a América Latina como a UE para segundo plano a nível estratégico.
A UE que negociou o acordo com o Mercosul no início da década de 2000 não é a mesma que é agora, em 2020, e será ainda mais diferente em 2030 com a nossa agenda do Pacto Ecológico Europeu. Por conseguinte, é legítimo que os cidadãos europeus hesitem em assinar um acordo com governos que rejeitam o Acordo de Paris e cujas políticas na Amazónia suscitam importantes preocupações ambientais.
Contudo, os custos políticos e económicos decorrentes da ausência de acordo seriam substanciais: após 20 anos de negociação, a credibilidade da Europa na região está em jogo. Este acordo deve ser visto como uma alavanca para a transformação dos modelos de produção e de consumo. Devemos utilizá-lo para promover o diálogo político e a convergência regulamentar rumo à transição «ecológica» de ambos os grupos regionais. Se não obtivermos este acordo, perdemos parte do potencial de alavancagem para debater estas questões com os países da ALC.
O acordo já proporciona ferramentas úteis para resolver este problema, devendo ser possível reforçá-las com instrumentos adicionais em matéria de clima e ambiente, sem pôr em causa o que já foi negociado. Para a UE, um acordo reforçado será mais vantajoso do que a ausência de acordo.
Em todo o caso, devemos ser mais proativos para trabalhar em conjunto a nível multilateral, identificando questões específicas em que essa cooperação poderá ser mais proveitosa. Estamos a preparar um roteiro mais pormenorizado de compromisso e ações, que será apresentado no início do próximo ano.
Temos agora uma janela de oportunidade única que não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar. As nossas relações com a América Latina são-me particularmente caras. Todavia, estou convencido de que toda a UE sairá beneficiada se conseguirmos elevar as nossas relações ao nível que merecem.