“A nova liderança dos EUA está pronta para restabelecer a parceria, e a UE, por seu turno, deverá preparar-se para reforçar o seu contributo.”
A vitória eleitoral de Joe Biden e de Kamala Harris foi celebrada com entusiasmo, como testemunham as imagens. Não é de estranhar, pois estas não foram “eleições normais”. Muito estava em jogo, para o país e o seu papel e estatuto mundial e mesmo para o destino da política democrática em todo o mundo. Durante quatro dias, a população conteve a respiração enquanto eram contados os votos, no que foi uma corrida muito renhida. Como tantos milhões em todo o mundo, acompanhei as últimas notícias, de hora a hora.
Isto diz muito sobre o papel único dos EUA. Trata-se de um país muito poderoso, que encarna também uma narrativa poderosa: uma república democrática fundada por imigrantes em fuga à perseguição ou à procura de uma vida melhor. Apesar dos enormes desafios e divisões societais internos, uma das qualidades mais fortes da América tem sido a sua capacidade de renovação democrática. Foi exatamente isso que testemunhámos a semana passada: o sistema funcionou.
Em diplomacia, é prática comum evitar manifestações de preferência política. No entanto, de acordo com as sondagens, muitos europeus congratulam-se com o facto de a maioria dos americanos ter votado a favor da mudança. Não é segredo que os últimos quatro anos foram complicados para as relações entre a UE e os EUA, marcadas por inúmeras divergências políticas. Assistimos, inclusivamente, à erosão de alguns dos princípios que considerávamos pedras basilares da parceria transatlântica, e, por vezes, até ao esvaziamento da sua substância.
O presidente eleito Biden declarou claramente o seu empenho em restaurar a unidade e o respeito das normas e das instituições democráticas, tanto a nível nacional como internacional. Congratulamo-nos com isso, tal como com as garantias que deu de querer trabalhar com os aliados numa base de verdadeira parceria. Para a UE, os EUA são o mais importante parceiro e aliado e cremos que esta perceção é recíproca. Partilhamos uma longa história de trabalho conjunto, baseado em valores comuns. Congratulamo-nos, portanto, com a oportunidade de trabalhar mais uma vez com um presidente dos EUA que não nos considere um “inimigo” ou acredite que a UE tenha sido “criada para se aproveitar dos EUA”.
Estamos prontos a dar o nosso contributo para melhorar a cooperação. A fim de restabelecer a cooperação entre a UE e os EUA, é necessário fazer arrancar o “motor”. Mais especificamente, é necessário voltar a um verdadeiro diálogo, restabelecer o compromisso de formular estratégias conjuntas sempre que possível e estarmos dispostos a dotá-las de recursos.
Devemos sobretudo evitar um debate estéril, assente numa falsa premissa: optar por uma postura “transatlântica” ou “europeia”. No meu entender, investir numa Europa forte e capaz significa também investir numa parceria transatlântica revitalizada. Com uma administração Biden, ambas são faces de uma mesma medalha.
São muitos os domínios que exigem a estreita cooperação entre a UE e os EUA. Podemos já congratular-nos com a intenção declarada do presidente eleito de voltar a participar em importantes iniciativas multilaterais, como o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, o acordo nuclear com o Irão e a Organização Mundial da Saúde. O mesmo se pode dizer da sua intenção declarada de continuar a adotar uma postura construtiva relativamente a questões comerciais bilaterais, mas também na Organização Mundial do Comércio, incluindo o importante sistema de resolução de litígios. Em cada um destes domínios, a Europa deverá apoiar e facilitar um regresso harmonioso à mesa das negociações e utilizá-lo como trampolim para uma ação conjunta.
Podemos igualmente antever o interesse da futura administração Biden por uma estreita cooperação relativamente à China e aos desafios que coloca em termos de práticas comerciais desleais, de segurança e de outras questões que são motivo de preocupação para ambas as partes. A formulação de uma posição coerente e sólida relativamente à China está no topo da agenda de Washington e concita um acordo bipartidário. Estamos preparados e podemos esperar que o diálogo UE-EUA sobre a China, que acabamos de lançar no mês passado, seja prosseguido com renovada energia pela próxima administração.
No que diz respeito à NATO e ao “acordo” de segurança transatlântica, esperamos contar com o novo presidente para se mostrar firme no seu compromisso para com a aliança, coerente com o seu percurso ao longo de décadas. Contudo, tal como salientado por várias administrações dos EUA, tal implica a necessidade de a Europa melhorar o seu desempenho e assumir maior responsabilidade pela sua própria segurança. Os EUA apoiarão uma política comum de segurança e defesa europeia que seja dotada dos recursos adequados e que permita à Europa fazer face às ameaças à segurança, nomeadamente na nossa vizinhança. Isto corresponde também muito ao nosso interesse.
Em suma, uma Europa capaz e com orientação estratégica é o melhor parceiro para os EUA – e corresponde também às necessidades da própria Europa. É por esta razão que temos de prosseguir o reforço da autonomia estratégica da Europa, ou seja, da sua capacidade de agir e de se defender eficazmente ela própria. Os últimos quatro anos foram reveladores e a COVID-19 acentuou a necessidade de assumirmos a responsabilidade pela nossa própria segurança e de darmos resposta a outras vulnerabilidades, norteados pelo imperativo de reforçar a nossa autonomia estratégica.
Há muitos outros domínios da política externa que se revestem de interesse comum para a UE e os EUA: a Rússia e os países da Vizinhança Oriental, a Líbia e a região do Médio Oriente e do Norte de África, os Balcãs e a Turquia/Mediterrâneo Oriental. Mas também em horizontes mais alargados: o Afeganistão, os mares da China Meridional e Oriental, a Venezuela e outras paragens. Acrescem os já não recentes desafios, como as ameaças híbridas, a desinformação ou os aspetos de segurança da inteligência artificial e da 5G. A lista é longa, continua a crescer e as necessidades tornam-se urgentes.
Nos próximos dias e semanas, a UE entrará em contacto com a futura administração para analisar a melhor forma de colaborar. Importa ter presente que a sua primeira prioridade será de ordem interna, nomeadamente combater a pandemia e as suas consequências económicas e sanar as enormes divisões do país. Para ilustrar este último ponto, no momento em que escrevo este texto, o presidente Trump ainda não reconheceu a sua derrota. De qualquer forma, o presidente eleito Biden poderá ter de trabalhar com um Senado controlado pelo Partido Republicano. Tal poderá ter impacto na sua liberdade de manobra, especialmente no domínio da política externa.
Concluindo: congratulo-me com o facto de os EUA terem eleito uma nova liderança, numa plataforma de mudança e estarem empenhados em trabalhar com os aliados democráticos. Enquanto os nossos parceiros americanos se concentram na transição, deveremos centrar-nos nas nossas expectativas e no que a UE pode oferecer. Os dirigentes e os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE debaterão a forma de tirar o máximo partido deste novo capítulo que agora se inicia. Mãos à obra!